domingo, 30 de novembro de 2008

Malazarte


Flutua nos olhos,
Brilha na pele
Tua alegria que fere
Brios e zangas.

Tua infância levada
Deslizou com a serpente
Do teu tempo esticado
Teu amor pelos cavalos
Teu mar solitário
Teus sentidos amortecidos
Teus venenos purpurina
Tua coragem bêbada
De medo solto na fumaça.

De éter foi teu flerte
Tua sina de rebelde
Tua vida contra morte
Teus anjos da guarda exaustos
Teu sorriso presente.

É terna minha confiança, malazarte,
Ao ver-te rasgar tuas crises
E furar tuas dores,
Aprendo contigo
A quase morrer e voltar
Eterna criança sempre viva.

sábado, 29 de novembro de 2008

Poema Dia - Um poeta a cada dia

Poema Dia, projeto de Victor Barone, é ousado: reune 28 poetas e escritores comprometidos a adotar um dia do mês e, neste dia, postar um poema ou mini-conto de sua autoria. O objetivo é criar uma rede na qual possamos beber das fontes de cada um e divulgar o trabalho de todos.

Dia 1º/12, segunda-feira, começamos, esta aventura que é

Paratexto

A palavra alinha a letra
A letra lavra a língua
A língua age em fala
A fala fixa o signo
O tom sonoriza o significante
A sintaxe sintetiza o som
Forma a frase, traça a imagem
Faz do rastro o significado
E grafa a paisagem

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Súbito



É o olhar.
Ele se perde
Nas gotas gordas e moles.
Depois se joga
E explode desencanto na calçada
Desta tarde que chove e me invade

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Credo Sem Graça



A tarde espreguiça
Nos passos da lucidez
Que se afasta desse destino
Laçado nas nuanças
Dessa curiosidade malsã
Escondida nas saias
Nas dobras dessas moças
Na sanha
No interesse disfarçado
No sorriso amargo
Desses falsos titãs
Estacionados na ressaca
De seus lapsos
Sulcados nas esquinas
De seus discursos sem alma
Nem sentido.

Chove na praça
Ao som da ária clássica,
Passantes cedem à saga,
Senhoras vencem a insônia
Rezando seus terços de aço
Desfiam sonhos sagrados
Sem graça.
E sobre o sabre do silêncio
Faz frio
E sombras sussurram
Salvem-se

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Íntima



Trago a outra
Que sou eu
Presa na face
Rasa do espelho

Sem máscara
Mulher na orla
Escorre dos olhos
Pela fresta da frase

Solta no oco
Fundo de mim
Sem asas
Mostro-me esta
Íntima e prestes

Prêt – à – Porter

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Diva

leni

Diva é aquela que faz com que se prostem à sua frente, quedados por seu talento, carisma e força.

Nasce festa, cresce aos saltos,
Roça de leve quando passa,
É de éter.
Quando pisa, rasga a vida,
É lava de libido.
Escorre brilho pela fresta
Do olho da outra.
É espelho
Quando é a mesma.
Quando veste seda e renda,
Coleira de pérola,
Brinca com a pele nua.
Quando quer mostra o gênio,
É deusa.
É altiva, quando vadia.
Diva é vento,
Leva o medo e traz a graça.
Em cada poro é alegria.
Quando é triste, faz troça,
Esconde a dor atrás dos dentes,
Dissimula meia vista
E mostra a língua.

Leni Riefenstahl,

A Deusa Imperfeita

Ela era a diretora preferida de Hitler, que, dizem, até se apaixonou por Leni, a mulher. A vergonha do holocausto manchou-a indiretamente, foi discriminada em sua época e a história legou para ela uma herança de preconceitos.
E foi, também, um dos maiores gênios da história do cinema...

sábado, 15 de novembro de 2008

Dry Martini



Passos de pressa
Encerram o abraço
Do dia com a praça
E passantes tropeçam
Nos dejetos da tarde
Laçados no mesmo desejo,
Satisfazer, sem medo, a sanha
Na calçada desse crepúsculo
Cúmplice e sedutor da diva
Vestida de preto e segredo,
Sátira e algoz da lucidez
A noite, antes de descer sobre a cidade
Assopra a seda da moça
E faz supor força doce
No viço do garçom
Que lhe serve taças sôfregas
De martini seco gelado sem gelo

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Sem Querer


Sem que eu peça
Teu rosto passeia fora da taça
Desloca o ar, sobressalta a boca
Põe minha certeza de ponta-cabeça

Sem que eu espere
Estremeço quando lembro
Do olhar vazio, do canto sem enlevo
Do cheiro de medo

Sem que eu impeça
Temo que a felicidade se mexa
Fuja ao menor movimento
Antes que eu te esqueça

Sem que eu queira
Soluço, enjôo, ciclo
Parto, espasmo, abraço,
Beijo, depois fico imóvel em mim

Sem pedir, duvido
Sem impedir, aconteço
Sem esperar, vacilo
Sem querer, termino

Imagem: Cruel, Deborah Colker

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Aurora noir(e)



Entre as telhas, sereno
Jaz um resto de esconde-esconde
Que brinca de decifrar armadilhas primevas.
É quebra-cabeça impreciso que rói
A parede da noite de uma criança

As sombras são leões com jubas de folhas
Nos olhos de espanto azul franzido
O prazer da fera em plena fuga é ele.
Rei à espera na rede do terraço ancestral
A presença da sua ausência é caos

Na areia da vanguarda, vacas mansas flertam
Com seus heróis pescadores que espantam
As gaivotas vorazes do pensamento.
À luz da estrela da manhã, o primeiro cigarro
Aura noir(e) no alvorecer

Ela avança lãs enroladas nos tornozelos
A cabeça levemente inclinada para esquerda
Nas mãos o calor do café acorda a dúvida.
Não sabe o que mais teme ou deseja ser
Tentou ficar muito quieta

Imagem: Hiroshi Sugimoto
Música: Chopin Nocturne