quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Guaiamum, nunca mais

Sobre a mesa os caranguejos

E no meu peito a estranheza

- lama do mangue deles –

Presa na arrogância da minha fala

Tragada por ímpetos de poder

E direito sobre tempos e terrenos

Queria ser a morena nativa,

Encharcada de jeito e graça,

Sedução e charme para o olhar dos homens

Essa mulher que seduz, conquista porque sabe

Rasgar a casca, mastigar a carne, chupar as patas,

Quebrar e devorar a couraça

Depois, engolir o bicho inteiro

Queria ser a rainha

Na última casa do tabuleiro

Na beira do bairro boêmio

Ser a estrela guia da Banda Delírius

De estrangeira deslumbrada com o rei

Negro que me comia

Enquanto eu, sem destreza, sujava uma noite inteira

Sufocada pela malícia dos olhos dele,

Chamei a minha faxineira

Ela veio divertida na sua morenice,

Viu meus vestido esquisito, de griffe

Meu desamparo, meu olhar

Bêbado e cego de medo

Sorriu, trouxe um pano de chita,

Talco, perfume, pó e pente,

Elogiou meu cabelo e a brancura da pele,

Preparou pro meu ego um bife com fritas

E brindamos com vinho tinto.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Cinza, chumbo e chuva

Num passo que mal pisa, vem a chuva
Na ponta do trovão gotas
Ferem e lavam esperanças sujas
De destinos cunhados em céu plúmbeo

Campo exposto ao pensamento sórdido
Que julga pelo olhar antes do toque
Armadilha frágil d'almas encardidas
Em débil loucura do poeder em foco

A cidade afogada fede em cinza
Chora insanidade gris sem fim
E na enchente escorre alixo e estima

Um raio rasga e risca por um triz
A fala engasga não cala e mal diz
A sina de nascer e viver assim


U

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Jacintas

Vi uma jacinta
Levar o dia nas costas
E sumir no horizonte

366 jacintas
Sumiram no horizonte
Levaram o ano bissexto

As jacintas levaram o ano
E deixaram seu rastro
De sóis apagados
E muitos presentes

Um terreno pra José
A saúde de Maria
O emprego de Leonor
O filhinho de Dozé
A carroça de Jacinto
A prenhez para Jacinta...

Faltavam 120 jacintas
Quando meu presente
Caiu das asas da do dia:
Aquele dia não perdi
Não perdi mais nenhum
Vi todas as jacintas
Ao lado da mulher amada
Que caiu de uma jacinta
Nesses poucos momentos
Em que fiquei sem te ver
Amei mais que Camões
Amou em duas vidas.

Dono do Nariz

De golpe certeiro e justo

Coloco o destino no trilho,

Não me assusto com qualquer susto

E nem aceito ter filho.




Bicho homem do concreto

Traço minhas avenidas,

Acompanho meu féretro,

Cicatrizo as feridas.




Sou do cordão do solitário,

Multidão me enoja.

Sou sabido, não otário,

Não pertenço a essa corja.




Não tenho qualquer problema,

Coleciono soluções.

Não esquentar é meu lema,

Dito eu minhas ações.




Não sigo ordem alguma,

Meu caminho eu que digo,

Meu ofício, em suma,

Não tem paga, sou mendigo.

Fome

Nuvens saem do fogão
para choverem com cheiro de galinha cozida
nas ruelas fedorentas
onde o vagabundo cata cascas de bananas
nas latas de lixo.


O cheiro de almoço
penetra fundo n'alma do faminto
que mastiga saliva insalobra
e chora lágrimas de sobremesa.


No gueto dos mundos
existe um quarto mundo
imundo no quintal dos nababos
onde o bebê semi-morto
berra abocanhando a tetas secas e murchas
de uma mãe sem vida.

Assimétrico

Surdo

Louco

Apaixonado

E perdido em tua madrugada

Não durmo

E acordo

Perdido

Cego

Louco

Apaixonado no sonho que não sonhei

Bêbado

Abstêmio

Louco

Rasgo a carta

Que me escreveste

Em meu sonho

Que não sonhei

Acordado

Tetraplégico

Louco

Busco uma razão

Uma fórmula matemática

Que elaborei

Para te conquistar

O resultado final

Foi implacável

E diagnosticou

Sem dó

Nem ré

Que estou

Apaixonado

Louco

Canguinha

O enterro anda pela hora da morte

e eu, como um homem forte,

não sou burro ou idiota.

Prefiro que nem ladrão ou agiota

Ponha a mão no meu dinheiro,

Não sentirão nem o cheiro!

Continuarei aqui, vivo,

Brigando e muito ativo.

Mundo

O mundo vira e desvira

Feito tartaruga bêbada.




O mundo vai

Muda de idéia

Volta.




O mundo se acalma e se revolta

Se endireita

Se entorta

Arrebenta e se conserta.




O mundo rola




Cristãos se convertem

Ateus se convertem

Islamitas não se convertem

Mudam de idéia

E revertem

E se revestem nas armaduras

Com elmos sem visor.




O mundo é vagabundo

E trôpego caminha

Indo e vindo.




O de antes será depois

E depois do depois

O hoje será depois.




O mundo...




Ah! A vida!

O mundo está louco!

Mas vai sanar

Para enlouquecer saudavelmente.

Pátria

À procura de nós mesmos

Nos sertões, na caatinga,

Nos pampas e nas florestas,

Contamos os dias e as ruas

Sem saber quem somos.




Sem identidade,

Sem dinheiro, sem saúde,

Com a boca faltando dentes

E sem pão para mastigar

Choramos falando Pátria,

Crendo nos que nos mentem,

Entendendo o que não dizem

Sem saber o que virá,

Mas na certeza medonha

Que melhor poderia ser.




À procura de nós mesmos

Perdemos nossos rastros

Na poeira que a vida deixa.




Nos confundimos,

Tropeçamos no passado

Sem saber o que virá.

Estéril

A poesia está pendurada

No bico da caneta

Mas não quer cair.




O poema tem vertigem

E, embora feito,

Não quer descer ao papel

E me irrito com a infertilidade.




Hoje fiz o poema

Que há muito quis fazer,

Mas ele não nasce,

Não vem à luz do papel.





O papel que pariu o poema

Que se encontra feito...




A caneta guarda em si

O poema já criado...




Há um complô contra o poeta

Que acordou com a poesia pronta

Que se recusa a nascer.
um dia

único

e todos

se dizem

cristãos fervorosos e tementes a Deus que rezam e pedem

aos céus eternas vidas e paz aos homens cheios de boa vo

ntade e ao fim da missa da procissão vão à praia às monta

nhas aos

motéis e

bares on

de se em

briagam

e vivem

a vida po

rca e gos

tosa de p

ecados e

prazeres

o céu pode esperar.

Ira

Bocarras escancaradas

Escarram sua ironia

Diante de meus olhos perplexos

Que também se negam

A desviar-se das bocarras

Que trazem junto unhas, garras

Sujas e ensopadas de sangue

Como unhas de açougueiro.

Dedos longos, finos e horrendos

Agarram-se a minha garganta

Como tenazes

E tentam me levar

Para lugar nenhum

Onde multidão espera

Um gesto

Um ai

Para me devorar

Como descamisados famintos

Que em mim vingarão seu jejum,

Seu frio e sua ira

Por estarem sem camisas

Com frio

E com raiva.

Resposta

Em tuas letras

Vejo tua saudade,

Vejo teus olhos

Me fitando molhados,

Pedindo socoro,

Pedindo um beijo,

Mandando um beijo carente de resposta.

Em tuas letras

Te vejo vindo a mim

Triste e cansada,

Braços caídos, exaustos.

Em tuas letras

Vejo minha impotência

De levar-te ao céu

Longe desse inferno

Onde te asilaram.

Em tuas letras

Vejo o sonho de nós dois

Voando sobre as nuvens

Sem frio

Sem dor

Sem vontade de ninguém

Sem vontade de voltar.

Sobre tuas letras

Me debruço horas a fio

Imaginando o que fazes agora

Na hora em que sonho contigo.

Cumplicidade

Não se perca

Me ache

Não desespere

Me acalme

Não lute

Me vença

Não se entristeça

Me alente

Não se apague

Me ilumine

Não corra

Passeie comigo

Não grite

Me sussurre

Não parta

Me leve

Não sofra

Me console

Não odeie

Me ame.

Carne

O corpo vendával da mulher
espera o corpo comprável
de seu algoz sedento.

Mais um macho orgulhoso
porém carente
que dirá que fez amor
após o sexo mal feito.

A prostituta
portas abertas para a podridão
atravessa milênios
satisfazendo pênis pouco exigentes.

Noites seguidas
são perseguidas
pagas,
mal ou bem,
levando o esperma,
o dinheiro,
a carência,
as lágrimas dos solitários.

São generosas
em sua brutalidade.
São buracos de prazer remunerado.
São carne quente,
máquinas de sexo frio.

A Meio Caminho

O assanhaço arranhou o céu

Com a ponta de sua asa.

Na sombra daquela nuvem

O tatu descansou, bariga pro ar.

O cristal da água trincou

No borbulhar do pintado.

Verde de ver de dia

Preto de ver de noite

Cinza pra ver depois.

Mata, moitas e mitos

Historinhas pra dormir

Pesadelo de acordar.

A preá fugiu pro pasto

A harpia voou pro prédio.

Jaguatirica faz jejum

Economiza no tamatá

Ariranha morreu queimada

O carvão foi pra usina

Assanhaço voa, voa,

Não tem mais onde pousar.

Lapso

Eram de vidro e poeira

as ondas que se quebravam

no toque poroso da areia.




Nos estilhaços de mar

mais um par de asas femininas

fugiu rumo a qualquer lugar

rumo a lugar nenhum

sem rumo.




Ficou o rasgo na pele

o lanho em cada posta de costa

um ferimento no cérebro

em colapso, semi adormecido,

torpor de memória perdida.




O tica-tac da maré

cronometra o subir e descer do corpo

perdido entre o vidro, a poeira

e os estilhaços das ondas

Tipinhos

Reclama do tempo por mania.
Se chove, xinga São Pedro;
Se há sol, maldiz o dia.

Rejeita a comida por birra.
Se é sopa, empurra o prato;
Se é pastel, prefere esfirra.

Se o dia é claro, fecha a vista;
Na noite escura abre os olhos.
Odeia o adorado, não gosta da benquista.

Dorme cedo porque quer.
Não trabalha, não estuda,
Não é rico nem esmoler.

Mas de tudo sabe tudo,
Em cada coisa é doutor.
Diz-se sábio, não sortudo.

Nada satisfaz o tipo
Sejam coisas ou idéias.
Ao encontrá-lo, constipo.

Desses estamos cheios
Como intelectuais letrados.
Não lhes falo, não proseio.

Bola

A antena parabólica

Nos trás o mundo aqui.

O mundo é dor e cólica,

soldado, bomba, bola, faquir...

O satélite dá voltas

Para nos trazer o mundo

Que faz as suas rotas

Pelo espaço sem fundo.

A televisão reproduz

O que acontece lá.

O turco come cuscus.

É guerra em Bagdá.

Futebol na Argentina,

Atentado na Espanha,

Fome na Conchichina,

Árabe bate, judeu apanha,

Terremoto no Japão,

Crise no Peru,

Fome no Afeganistão,

Sanduiche em Bauru.

Tudo é tão importante,

mas não quero nem saber.

Quero que o canário cante

E tudo o mais vá...

Coordenadas

Longitude de vidas navegantes na seca

Ladeadas por fantasmas encardidos,

Levam carnes penduradas nos ossos doentes,

Lágrimas esturricadas, fome e suor seco.

Pés feridos, chagas, rachaduras nos calcanhares

Perambulam em falso rumo, quimeras,

Paraíso só existente nas noites desmaiadas

Pelos casebres de sapê abandonados no nada.

A secura que trinca a pele, evapora o choro

Amargura ainda mais a fome persistente

Amalgama no esqueleto a miséria teimosa.

Acabam-se os dia intermináveis sob urubus.

Passou

De tanto ela passar,

passou.

Passou bonita

Com papoula nos cabelos,

Passou morena,

Dourada de sol,

Passou com cabelos soltos,

Negra mariposa, aérea,

Negra, negra, preta,

E sumiu depois da esquina.

Passou tão rápida

Maquilada para a noite,

Colorida para o dia,

Alegre para a vida.

Passou em sonhos acordados

Flutuando sobre o lençol,

Passou molhada de chuva

E de cerveja gelada

E de sorvete de goiaba.

Passou...

Já foi...

Depois

Cinco centímetros de beijo

Em cada face macia

Para dispersar o torpor

De amante mal amado.


Noite de álcool

Espalhada ao redor da mesa

Onde está um home só

Com vontade de chorar.

Pendurada na toalha

Ou trepada na garrafa,

Fazendo alarido,

Está a sombra com buraco no peito.

Dor de ira

Vergonha de orgulho

Saudade de amor

E um garçon solícito.

Margaridas de cerveja

Com bafo assustador

É seu copo prenhe de solidão

Povocada por ciúme.

Em cada lágrima que cai

A imagem dela

Delineada na água salgada

Que banha seu corpo vestido.

Linha

Cinzas dos dias

Chovem sobre o hoje

Que já não conta

Após cada segundo

E o ontem

Transformado em nada

Nada é.

No fim da linha

Curvilínea do horizonte

Tem outro horizonte

Onde nada há

Senão uma linha

Sem horizonte

Mas com outra linha

Curvilinha linearmente curva.

Festa Sem Música

Festa sem música
Para quem é de fora.

Muito choro
pouca rima,
Uma delas me olhando
E nada mais.

Um cego guiando outro
Por vielas escuras
Cheias de faróis de carros
Que não param.

Aflição
Melancolia
E a falta de algo bom
Que solucione o mistério
De tão esperada vinda.

Salas, praças e monumentos
Passando pela vista
Como passam os minutos
Passivos e imparciais.

Nada de bom
Ou de ruim,
Apenas dias,
Um após outro
Em seqüência interminável
E infértil
Para uma cabeça confusa.

Reuniões sem propósito
E ausência de objetivos,
Somente a impressão de perda
Do que era bem melhor.

Chuva, sol e incerteza
No clima das ladeiras
Sem árvores e sem sombras
Onde se possa descansar
De tão inútil caminhada.

Velas para outra tentativa
Que foi à bancarrota.

Crianças
No barulho dos dias
Como sombras inquietas
Que não param
Nem seguem,
Apenas se repetem.

Dinheiro
Produção
Inflação
E o mesmo ritmo
De qualquer lugar
Que vive do egoismo
De todos os bolsos
De mesquinharia e desunião.

Fauna da cidade
Que descansa na inércia do tempo
Sem pressa
Ou vontade de criar.

Pescaria

Levo meu barco ao mar
Pensando na boa pesca
Que trarei pra te agradar.

Na ponta da vela
Levo teu lenço cheiroso
Com imagem da santa
Que vem me velar.

A cada peixe fisgado
Incho o peito orgulhoso,
Com saudade, esperançoso
De receber como agrado
Um beijinho sorrateiro
Carinhoso e envergonhado
Da sereia que deixei
Na praia, parada, olhando eu ir pro mar.

Trago meu barco do volta
E de longe vejo o vestido branco
Da cor da bujarrona
Parado, me esperando,
O coração acelerado
Querendo acelerar o vento
Para de encontrar mais depressa.

Noite

Se a noite virasse dia
os dias seriam tão tristes.
Nossos melhores dias
acontecem à noite.
Os dias deveriam ser noites,
somente noites,
uma depois d'outra,
eternas noites...
Para quê tantos sóis
se a Lua nos basta?
Lua após Lua,
uma vem, outra sai,
estrelas todo o tempo
e nós ali, olhando o céu.

Poesia Doentia

No escuro
Procuro e curo
Os males da minha poesia doentia.
No Escuro
Revejo o futuro obscuro
Da minha poesia louca e doentia.
No escuro,
Com uma pá, furo
O peito descoberto da minha poesia prosaica.
No escuro
Ergo o muro
Que aprisona minha poesia escura.
No escuro
Do verbo duro
Conserto minha poesia insana.
No escuro
Negro puro
Durmo sobre minha poesia sem cara.

Manuelina

E tu dizes que tua paixão
É somente diversão.
Tua paixão é busca, é catação,
É dor, mortificação.

Tu dizes que tua paixão
É pouquinho de querer.
É muito mais que amar,
É chorar e sofrer.

Dizes que tua paixão
É falta do que fazer.
É trabalho, é labuta,
Muito mais que ocupação.

Que tua paixão
É nogocinho à toa.
Ela é muito empreendimento,
Perda, lucro, negociação.

Tua paixão
Não é o pouco que dizes,
Muito mais que qualquer coisa
É estádio cheio, lotação.

Paixão
Não é só horas juntos, não.
É toda hora, dia-noite,
O tempo todo, é duração.

Miséria

Na boca do mundo
um grito calado do que chora
de fome, frio e dor
esquecido pelos becos porcos.
Nos olhos do mundo
lágrimas secam ao relento
e se molham de sereno
das noites pelas ruas.
Nas pernas do mundo
o cansaço de andar em vão
em busca de migalhas
que se esparramam pelo chão.
Nos braços do mundo
a carência de abraço,
de afago, de carinho
do maltrapilho da cidade.
No estômago do mundo
a falta do alimento,
do calor da sopa, do feijão
de que não se lembra o paladar.
Nos mundos do mundo
as almas quase mortas
perambulam famintas
à procura da vida roubada.

Desespero

Dá vontade de morrer ou de sofrer
Só para deixá-la com remorsos,
Mas se ela ficar com pena
O melhor é esquecê-la.

A não ser que me faça o cafuné
Pelo qual sempre esperei.
Mas se eu morrer, que besteira,
De que adiantariam os cafunés?

Ela é luz de dez mil sóis
E escuridão de noite apagada
No meio da selva sem frestas.
Ela é relâmpago quando passa.

E eu sofro de fazer dó
Por ela não vir que a vejo passar
No seu passo de pomba de guerra,
Ah, eu choro, como choro.

Em meio à multidão
De comércio em meio ao rush
Procuro a sombra iluminada dela
Mas só vejo sombras comuns.

Não sei se ela é de teatro, apenas,
De sei lá que literatura
Ou se é mulher de verdade,
Só sei que não a acho nos livros.

Mas quando a vejo
Fito-a com tanto cuidado
Com medo de quebrar com os olhos
Sua morenice fugidia.

Se ela é ou não é
Pouco importa para mim amante besta.
O que importa é que a amo
E como a amo, apatetado,

Largado de cara no mundo.
Um amor meio não quero
Como se de muito adiantasse,
com que diabos!, como preenche

O tempo, os espaços, o cérebro
A ponto de esquecer o resto,
De poetar calado para ela
Cada segundo, cada passo cardíaco.

E saio olhando as paredes,
As estrelas, as praias, o sol,
Imaginando como a vêem.
Parece que nada a viu

Porque nada me conta dela.
Me embriago esperando
Notícias dela no fundo do copo.
Copo vazio não fala e

Copo cheio se engasga ao falar.
Ela não está ali também.
Enfim, quando a encontro e
O coração tapa a boca

Querendo pular para a rua,
Não consigo falar da falta
Que ela me fez efaz.
Ela nem-te-ligo continua sendo ela

Gesso e bronze como estátua.
Estátua que anda e dança,
Não pára quieta, brinca e
bebe, sei lá em que botecos.

Estátua estática sou eu
Com medo que a um simples
Gesto se assuste e vá embora.
Fico quieto, estanque, estátua.

Nem assim a prendo.
Ela é máquina de se mexer.
Não sossega, é energia,
É força motriz, a danada.

No tempo de um piscar
Ela já sumiu entre ventos,
Folhas e papéis e lá se vai.
Tempo para reencontrá-la.

Caço e me coço para achar
Pelo menos as marcas do seu
Sapato, mas ela pisa tão suave
Que não deixa nem rastro para mim.

Ela é éter, tão volátil,
Que fico imaginando
de onde Orfeu a criou,
Se não é fantasia apenas.

Se há por baixo dos cabelos
Um cérebro pensante ou se é
Toda idéia minha. Se ela
Toma banho ou a água a atravessa.

Será que ela tem ossos?
Tem pensamentos? Saliva?
Será que ela dorme? Come?
Ou se alimenta de desejos?

Com tanta luz que irradia
Ela não pode ser real.
Ninguém pode vê-la, só eu,
Que sou um sonhador.

Ela é só mistério, é
História mal contada,
Mas não é apenas sonho.
Ela é mais que real.

Ela é passeio na praia,
Viagem a São Paulo,
É dança noturna, é
Beijo em lábios desconhecidos.

Ela é imagem gravada
Na eternidade do papel.
Ela é passos nas ruas,
É cerveja, suor e sol.

Como não violentar a vontade
E tentar invadir sua visão
Perdida nos paralelepípedos e
Solta na aragem litorânea?

Faço-me palhaço para ela,
Faço-me soldado, atleta,
Me faço de mago e bruxo
Para receber, de relance,

Um mínimo de olhar,
mesmo que não seja
Todo meu ou em minha
Intenção. Tento roubar

Qualquer segundo vazio
Que ela queira jogar fora.
Quero uma migalha de
Sua atenção dividida.

Tento um esbarrão descuidado:
Me desculpa, moça, eu...
Mas a oportunida flui, aérea
Por entre o estalo indeciso.

Tento, então, negar sua existência
Tão gasosa, tão querer, querente,
Cheia de arroubos de loucura e
Fuga, de descaso e aconchego.

Faço de conta que não existe
Só para me sentir bem.
Como me sentir bem
Sem a existência dela?

Como sonhar, comer, beber,
Andar vagabundo, poetar,
Se os sonhos que sonho
São todinhos delazinha?

Se os pratos que delicio
São feitos por suas mãos
E para seu fino paladar?
Se a água ou o álcool

Que refrescam o mínimo
Da memória que persiste
São em toda sua intenção
De existência infinita?

Se só ando vagabundo por
vielas pútridas, à toa, à toa,
Somente na esperança vã
De vê-la a uma esquina?

Se todos os versos poetados
São apenas e unicamente
Para dizer da saudade boba
E constante da presença dela?

A razão se torna amiga
Da emoção reforçada
Só para me contrariar
E dizer que ela existe, sim.

Quero a morte sem ar
Do último beijo dela.
Quero a vida intensa
Abraçado as braços dela.

Que todos os raios
Se reúnam no céu
E despenquem sobre mim
Se não conseguí-la aqui!

Que me venha a morte
Mais letal de todas as mortes
Se serei impotente de
Conseguir todo seu amor!

Que sequem os meus mares
E o horizonte se acabe
Se não forem para trazê-la
Com todo o seu feitiço!

Eu a sei morenice viva,
Viva, vida, viramundo, vaga,
E louco me enebrio
Bêbado de seus olhos.

Como eterno amante
Faço dela jamborandi,
Minha floresta e ar;
Elejo-a minha natureza.

Que danem-se os astros
E todos os horóscopos
Se predizem a distância
Que há de se impor

Entre nossos egos tão
Díspares e tão iguais
Na vontade de não mais
Ficarem lonje entre si!

Vassouras e Baladeiras

Hoje voltarão as aves
E pousarão no fio elétrico
Observando vassouras e baladeiras.


Tempo de sol e papagaios
E espingardas de ar comprimido
Dedurando os passarinhos
Que observam vassouras e baladeiras.


Tempo de políticos e ladrões,
Uns pela frente,
Outros no escuro,
Sem vassouras, so baladeiras.


Hoje é dia de ônibus,
Aviões, acidentes,
Sangue no asfalto
Morte morte morte
Tratores e revólveres.


Dia de sonhos acordados
Das velhas aleijadas nas sarjetas,
Dos sargentos e recrutas,
Dos moribundos nas valas
Maltrapilhos e sem sorriso
Com o olhar de cachorro acostumado
Com vassouras e baladeiras.


Tarde de sol, nêutrons,
Músicas estridentes nas rádios,
Sol, praia, cerveja gelada,
Sol, mato, calor,
Sol, paletó e gravata,
Sol, passarinhos e macacos,
Sol, vassouras e baladeiras.

Fortaleza

As aranhas raquíticas e pernudas
passeiam pelas paredes pequenas e brancas
do meu quarto de dormir.

Esse quarto é meu lar
Vinte livros, a mesa e a rede.

As baratas me observam
e se assustam com meu olhar.

Os sapatos negros
apontam seu bico afiado
para a parede que os limita.

No teto a lâmpada amarelada
ilumina o micro-universo
com sobras desnecessáias de luz.

Lá fora nada me diz respeito
como o nada que me pertence,
mundo que não é meu.

Meu dia se resume às noites
sentado à escrivaninha
com montanhas de papéis
que me preenchem os sonhos diurnos.

Papéis que não são meus,
dívidas que não são minha
e que nada me dizem
senão da pobreza dos homens
e a riqueza dos bancos.

Eis meu mundinho
cercado de paredes brancas,
uma carteira de cigarros,
uma rede e um lençol,
papel e caneta
e a lembrança distante dos amigos
a quem e por quem escrevo.

Vidinha, vidinha,
cercada de desinteresses.
deixa o mato cobrir
deixa matar
o mato
deixa o anjo voar
deixa voar
a anjina

deixa tudo no lugar
deixa alugar
o tubo
tem de deixa
a gueixa chorar
a gueixa
deixa a ameixa melar
deixa beijar
a ameixa
bate o queixo no seixo
bate a flecha
o queixo

Gostosinho

Acorda,

olha pro teto,

minhas mãos em tuas tetas.

Acorda,

olha a parede,

molha meus lábios de sede.

Acorda,

olha pro chão,

meu corpo no teu colchão.

Acorda,

olha pro céu,

teus cabelos são meu véu.

Acorda,

manda qu'eu entre,

meu ventre sobre teu ventre.

Acorda,

manda qu'eu saia,

minha mão tira tua saia.

Acorda,

manda qu'eu deite,

teu corpo faz com qu'eu aceite.

Acorda,

geme de dor,

minha língua seca o suor.

Acorda,

olha pra lua,

minhas mãos te deixam nua.

Acorda,

olha pro sol,

te espero sob o lençol.
A areia da ampulheta

Desce em turbilhão,

Marca o tempo

Que não precisa da ampulheta.

A ampulheta inútil

Entrincheirada em sua areia

Marca o tempo inútil

Que não precisa da areia.

O tempo inútil

Conta os grãos de areia

Que não precisa do tempo

Para cair inutilmente.

V

Vivo o uivo

O silvo

Vaga

Voa

Vertical o uivo

A vulva

A válvula mitral

O vazio mortal

A vaca verde

Vende o véu vermelho

Vibra o alvéolo

A veia vela o vício

O Vaticano se vinga

Da vírgula velha

Ventral varíola

Varicocele

Via vaginal

Para o óvulo da víbora

Vasta vergonha a vasculhar com vassoura

As varizes da prima Vera

O vagabundo varrido

Vadia

Vigia o vigia

Que vigia o varal

Várias vezes o venvilhão

Foi visto

Veludoso

Venerando a vulnerabilidade

Da virgem

Fome

Triste é o homem que não come

E a raiva da fome pelo mundo,

O minifúndio,

A morte do índio,

A peste da pobreza.

Triste é o leite derramado

E a carne maltratada

Que não alimenta,

Que fermenta.

É a lágrima de quem lamenta.

Triste é o choro noturno

Da criança sem mingau,

A ira do homem mau

Que não chora,

Que ignora o choro do neném.

Trsite é a árvore que cai

E a panela que é só fundo,

É o prato vazio, imundo,

Com tanto verme faminto

Passeando pelas ruas.

Triste é o bolso vazio

E o pão sem manteiga.

É o sacrifício da gueixa

Que dá-se por um tostão,

que rasteja sem queixa,

Que lambe o chão.

Triste é o beco escuro, o gueto,

Onde fome é pintura, é ar,

Onde fome é estrela

E fome é o que se come.

Triste é o não do rico

Ao pobre que, num sussurro,

Pede sem ter orgulho

Já que orgulho é necessidade,

É vazio, é cabresto,

É rédea de cavalo magro.

Triste é a chuva no couro

Sem coberta e sem capa.

É porta aberta sem teto,

É o choro do feto

Da mulher que espera.
tenho pena

da pena

que pena

na corrente

de vento

Platônico

sempre uma rosa

cor de rosa sempre

sempre ardente

na eternidade uma paixão

sempre inesgotável

sempre uma sombra

um reflexo me aturdindo sempre

ela sempre ela

sempre o sol

e sempre a chuva

nos secando às vezes

nos molhando o resto do tempo

sempre o calor

que sempre me aquece por dentro

às vezes por fora

sempre a sigo

sempre perto

até mesmo longe

sempre a falta

até mesmo perto

sempre achando-a

embora sempre perdido

sempre querendo

sempre buscando

sempre encontrando

e sempre perdendo

quase sempre sozinho

Tortura

Me bate a porta na cara

Me leva junto na marra

Mira meus olhos e escarra

Me mantém preso no muro

Me dá um grito em sussurro

Me tira o ar com um murro

Me põe insone e faminto

Me diz na cara que minto

Me dá uma sova de cinto

Me escarafuncha a alma

Me dá dois tapas de palma

Me destrói a noite calma

Me arrasta para a cama

Me esfrega a cara na lama

Me apaga e me inflama

Me leva da festa ao torpor

Me leva onde quer que for

Me diz, cínica, que é amor.

Nem Um Pio

Um grito rouco se perde

Nas paredes do meu prédio.

Não é meu, seu ou de alguém,

Mas do madeirame velho,

Do tijolo e da argamassa,

Espremidos e unidos num liame

Que dá a eles natureza e forma.

No casamento desses três

Faz-se um conjunto de gaiolas

De pássaros sem asas que não cantam,

Não voam, não encantam e nem adornam.

Pássaros disformes e feiosos,

Eu, meus vizinhos e as visitas,

Sujeitinhos sem graça, grossos,

Sem utilidade para o prédio e o mundo,

Apenas para si e seus umbigos.

Pássaros descartáveis, olvidáveis,

Que deixam choro quando partem

E choram quando os deixam ficar,

Bichinhos que passam no tempo

E deixam marcas na superfície,

Pouco ou nada no miolo.

Humanices

Se o símio a si se assemelha

E o avaro vadio amealha

A riqueza que o risco compensa,

Mais humana a malta não pensa.

Cantador

O repentista canta coisas como ninguém mais faz

Canta as flores, canta as mulheres, plantas e animais

Canta de trás pra diante, canta da frente pra trás

Canta as obras de Deus e as artes do Santanás.

Novelo

Passo a mão por teus cabelos

Enrolados em novelo

De poesias sem fim

Em busca de ti e mim.



Caço entre teus pêlos

Meu juízo que perdi

Ao olhar-te no espelho

Em que não me vi.



Nesses sonhos de loucura

Ouço tua voz cantando

A música que o coração procura

Ardendo em fogo brando.

Lobo

Nada mais triste

Que um lobo solitário

Uivando para a lua.

Nada mais solitário

Que um lobo triste

Uivando para a lua.

Nada mais lobo

Que um solitário triste

Uivando para a lua.

Nada mais lua

Que um lobo triste

Uivando solitário

Nada mais uivando

Que uma lua solitária

Para um lobo triste

Nada mais uivando

Que um triste lobo

Para uma lua solitária.

Preciso encher o copo...

Marca

Não preciso da Lua

Para te ver no escuro da noite:

Brilhas sozinha.

Não precisas perfume

Para eu te perceber:

És pura rosa.

Não preciso que fales

Para que ouça tua voz:

Por si só és música

Não é necessário o Sol

Para te bronzeares:

És fogo puro

Não preciso memória

Para te lembrar:

És brilhante tatuagem

Marca

Não preciso da Lua

Para te ver no escuro da noite:

Brilhas sozinha.

Não precisas perfume

Para eu te perceber:

És pura rosa.

Não preciso que fales

Para que ouça tua voz:

Por si só és música

Não é necessário o Sol

Para te bronzeares:

És fogo puro

Não preciso memória

Para te lembrar:

És brilhante tatuagem

Cunhataí

Voam. Voam flores na aragem

E o tempo voa.



Voa infinitamente alto,

Tão alto que a vista não alcança.



Voa longe,

Voa cinco anos,

Cinco tão distantes-próximos anos

Que as pernas parecem pequenas

Para percorrê-los.



Voa alegre e único o tempo.

Vôo de guaynumby

Arrastando notícias

De um dia que não foi.



Voa o tempo guaracy-aba

Cabelos de sol,

Arrastando nos filhos da noite

(eu e tu)

Notícias de outro mundo,

Qualquer mundo,

Onde o amor é alegrria

Com os amores e alegrias

De todo o mundo

Na ponta do longo bico.



Vôo eu em teus brincos

Sendo tu flor

E eu teu guaynumby,

Quem sabe. guynamby?



Vôo festivo de alegre ave

Fazendo curvas e dribles

No espaço de nós dois.



Tremo, tremo nesse espaço

Único e inacabável,

Infinito espaço

Que separa a mim de ti.



Sugo nas pétalas do ar

Teu perfume persistente

Em busca do âmago,

Da essência, do átomo reluzente

Que forma tua estrutura

Única e inigualável

Das flores mais primeiras.



Vim do ipê em que reinavas

À procura da juçara

Onde és majestade

Única e insuperável

E recebo paãs no peito,

Doces e ardentes

Dos teus olhos longínquos

Enquanto não chego

E não sei se chegarei.



Enquanto não chego

Te trago presa,

Guardada,

Em uru, nhambi, patiguá, patuá, moco...



Sei lá o quê,

Dentro do peito.



Canto agora minha marantuba,

Minha paranduba,

Tuxaba inesgotável,

Moacara sem fim,

Nhengaçara inacabável

De braços que tu queiras para tua cintura,

O amor.



Teu peito de ubiratã

Rejeita meus afagos

Mas faço toryba

Aos teus acenos.



Monto minha moroca

Longe dos teus rios

E te observo

Do outro lado do pará,

Vestes nas mãos,

Elevando minha apem

Até às nuvens.



Tapuia que sou

Me refugio nos matos

E ipon-juca em tua defesa,

Quem ousa te olhar.



Cejy brilha no céu

E tu na terra,

Enquanto eu morto na mata

Sonho com o que vi,

E vejo e sonho

E espero e guardo.



Te encho de canitares

Nas noites mal dormidas,

Te enfeito de contas,

Te coloro de penas

E... pena que seja sonho.



A-por-u

Me comporto de dia.



A- poto-tim à noite.



Pelos teus cabelos percebo

Que tua tribo é outra

E tento me converter.



Sou marabá caçador

Não de onça ou jaguares,

De ava-canoeiros, quatis,

Surucucus, mucuri,

Honras ou malvadezas.



Sou marabá caçador

Da cunhã filha da lua,

Dona da noite,

De cunhataí.



Sou caraíba perdido

Na busca de quem sou

No corpo ignorante

Do amor que tenho.



Sou ajurrendy-pira

De cojy nascido,

De Tupã gerado,

Membira de Ceci

E vou morrer de novo

No pará imenso

De sua boca.

Sina

- Você daria sua vida por ela?

- Noventa e nove vezes se cem vidas tivesse.

- Por que não as cem?

- Porque esta está reservada para vivermos juntos.

Fim de Caso

Me deixa aqui sem pressa
Me deixa como achou
Me deixa amarrotado
Me deixa como estou
Me deixa enlameado
Me deixa com um sorriso
Me deixa no mesmo estado
Em que estava e cicatrizo
Mas me deixa inteiro
Sem pedaço faltando
Cada pedaço do peito
Deixa aqui um companheiro
Me deixa com meus vícios
Com todos meus medos
Me deixa errado
Sem qualquer remendo
Assim eu era e serei
Muito melhor do que fui
Não tão bom quanto queres
Nessa vidinha que flui
Deixa o livro do Bandeira
Deixa meu copo cheio
Deixa a cama aquecida
Mas leva teu cheiro
Me deixa acordado
No dia que não finda
Me deixa dormindo
Na noite escura e linda
Leva a garrafa de vinho
Mas deixa o cigarro
Leva o pijama sujo
Mas deixa a chave do carro
Me deixa como se não tivesse vindo
Me deixa sem qualquer memória
Leva teus retratos sorridentes
E leva tuas histórias

Cinco

Cinco irmãos famintos

Cinco bancos na praça

Cinco continentes navegando

Cinco dedos apontando

Cinco facas no peito

Cinco narizes catarrentos

Cinco vezes cinco qualquer coisa

Cinco damas mal vestidas

Cinco taras no padre

Cinco pecados na beata

Cinco marteladas na mão

Cinco copos de cachaça

Cinco horas da manhã

Cinco livros não lidos

Cinco bulas de remédio

Cinco doses amargas

Cinco males pra curar

Cinco curas adiadas

Cinco velórios simultâneos

Cinco velas apagadas

Cinco peitos na revistas

Cinco mãos num peito

Cinco celas

Cinco grades em cada cela

Cinco bandidos

Cinco inocentes presos

Cinco juízes de toga

Cinco prefeitos roubando

Cinco juízes de toga

Cinco culpados soltos

Cinco séculos de derrotas

Desainotece

Desanoitece na serra

Bacurau já foi drumí

Calango se levanta na pedreira

O sol esquenta a terra

O dia passa a fruí



A roça alumeia

Pomba-rola solta o vôo

Cavalo de arreio e bariguêra

Labuta num aperreia

Pra ela que vou



De enxada e estrovenga

Me ponho na capuêra

O feijão vai pra penêra

Sem pressa ou arenga

À sombra da carnaubêra



Verão de todo ano

Inverno de dois mês

Num me tira a estribêra

Sou rocêro de tutano

Priguiça num tem vez



A criação no eito

Palma se num tem capim

Poço d’água na pirambêra

Sempre tem trabaio feito

E tem tarefa sem fim



Terra que Deus deu

Pra tirar o sustento

Derde a luz premêra

O homem que tem o seu

Não morre sem alento

Mói de Chifre

Dá um teco de alfinim

Que hoje tô avexado,

E um tanto baqueado

Por conta da bulida

Que numa escapulida

Caiu nos beiços

De um cabra doidim

Me fez tanto buliço

Na alma, a lambida.


Preciso de adoçar,

Macho réi,

A boca e a chibata.

Vou na venda de raparigas

Esquecer a marmota

Por que passei indagora

E ficar até zambeta

Até dar um passa fora

Na lembrança duma figa.


Vou tomar uma meiota

E mochar o mói de chifre

Que ganhei nesta manhã

E quem vier de fulerage

Não vai ter quem decifre

O esqueleto sem cota

Espalhado no cimento.

Um melol de maçã

E um copo pro ferimeto!

Eterno

Ficou vazio n'alma

Nesse tanto tempo sem ti

E só a morte acalma

O sem sentido sem ti.



O mundo perdeu a cor

Quando me perdi de ti,

Coloquei a vida em penhor,

Irrecuperável sem ti.



Era tanto amor e paz

Antes de ficar sem ti.

Hoje nada agrada mais

Com essa ausência de ti.



O mundo pode acabar

Se estou aqui sem ti.

O tempo pode findar

Se eu continuar sem ti.

Iaras

Rufa o tambor longínquo de um coração
Nos pântanos pegajosos do esquecimento
Onde se atola até o umbigo
Um homem louco e rabujento que não lê
E nem ouve o que dizem as estrelas parasitas do céu.


Iaras mal vestidas o chamam
Para se afogar no lodaçal onde reinam
Mas o louco surdo não se seduz por suas canções
De afogar aventureiros mal intencionados
E as rainhas das águas ensandecem também
Ofendidas pelo descaso de seu alvo.


Vitórias-régias enegrecem,
Samaumeiras desabam
E as águas se alastram mais e mais
Fétidas e doentes
Em direção à cidade esquecida
Que não se dá conta da existência do pântano
Até toda a população também enlouquecer
Sob o brilho em morse da lua por trás das nuvens.

Insatisfeito

Pudicos me causam asco
Devassos me causam desprezo


Estúpidos me causam ira
Bonzinhos me causam pena


Bêbados me causam risos
Abstêmios, desconfiança


Sensíveis me espantam
Grossos me abrem os olhos


Cultos eu admiro
Ignorantes me aproximam


Lerdos me causam sono
Ligeiros passam por mim


Altos me dão vertigem
Baixos não me atingem


Dos sábios eu desconfio
Os beócios me presidem


Lindas não me encantam
Feias me refletem


Atletas nada me dizem
Sedentários, meus pares


Humanos não me agradam
Animais me afugentam

Incompatibilidade

Me dê um tapa

Que lhe dou um beijo



Me dê um beijo

Que lhe viro as costas



Me vire as costas

Que lhe seguirei



Me siga

Que eu me entrego



Se entregue a mim

Que mudo de vontade



Mude de vontade

Que lhe convencerei



Me convença

Que desistirei



Desista.

Idas e Vindas

Zarparam muitos

Decolaram tantos

Nos pontos das partidas

Lenços e lágrimas



Adeuses em mãos espalmadas

Viagens sem destinos

Permanências sem saudades

Nos lenços e nas lágrimas



Nas buscas de outras vidas

Vidas se perdem nas idas

Abraços se perdem sem costas

Beijos se perdem sem lábios



Alguns voltam alquebrados

Outros ficam nas distâncias

Muitos morrem nos trajetos

Outros morrem nas esperas

Preto e Branco

Claro que no escuro
O claro fica escuro
E o teu escuro claro
Mais claro fica
E o escuro já não fica escuro,
Obscurece-se clareando meu escuro
Preto-claro,
Clareando o meio-escuro
Que clareia a escuridão
Que nos cerca.


Minha clareza escura
E tua escuridão alva
Se confundem e alvejam-se
Na semi-escuridão.

Exagerado

Este é meu jeito de amar,
com exagero.


Amo por treze meses
de janeiro a fevereiro.


Amo em todas as cartas
do embornal de um carteiro.


Amo em todos os doces
da vida de um baleiro.


Amo mais que as palhas
de todo um celeiro.


Amo em cada perfume,
todos odores, em cada cheiro.


Amo por segundo
as unidades de um milheiro.


Amo a cada dia
o amor de ano inteiro.


Amo em cada roupa
que caiba em um maleiro.


Amo tanto amor
que não cabe num petroleiro.


Amo com as mãos, os pés,
os ossos, músculos, os pêlos,
de corpo inteiro.

Poda

Uma tesoura faria tudo

como fazem os censores

que cortam e remendam

o que lhes contradiz.



Eu cortaria e remendaria

as páginas e capítulos

da literatura de cordel

em que me transformei.



De sertão e de cidade

horizontes e nuvens pretas

de riachos e litoral

igarapés e lodaçais

de estrelas e faróis

sóis, luas e eclipses

de espada e canivete

tinta, lápis e papel



De quase tudo e quase nada

foram feitas as semanas

do livro fechado.



Muito material

pouco proveito.



Carece de tesourada,

mais que isso, navalhada,

ou, talvez, simples poda.

Duo

Você me chamou, eu vim

Lhe chamei, seguiu



Você me xingou, ouvi

Lhe xinguei, chorou



Você me seguiu, deixei

Lhe segui, correu



Você me beijou, gostei

Lhe beijei, sorriu



Você me prendeu, cedi

Lhe prendi, fugiu



Você me mordeu, gritei

Lhe mordi, doeu



Você me mandou, fui

Lhe mandei, não foi



Você me odiou, sofri

Lhe odiei, gostou



Você me acordou, vivi

Lhe acordei, dormiu



Você se despediu, morri

Me despedi, adeus

Delirium Tremens

Aproveitei a justificável amnésia alcóolica
para dizer a ela que não a amo mais,
muito antes de ter-lhe dado o amor.


O álcool é o melhor amigo do homem
quando não se tem uma mulher ao lado
e o esquecimento é seu complemento
quando não se faz poesia.


Me esqueci que bebi
e achei que estava louco
na minha inconsciência bêbada
de meia noite após o porre.


Não me lembrem de esquecer
o vexame que foi não ter amado
enquanto sóbrio,
mas de cerveja em pinga
me embriaguei de beijos platônicos.


A mulher é o pior inimigo do homem
antes da bebida diuturna
e sua melhor eterna procura
depois do pileque consagrado.

Simbiose

Entre tantas pernas
Sonhei com as suas
E me enrosquei nas minhas
Num nó de marinheiro inexplicável.


Beijei minha boca
Fingindo que era sua
E alisei meus peitos
Como se fossem os seus.


Feito Narciso
Me amei imaginando ser você
E dormi no meu colo
Pertinho do seu sexo
De nuvens de chuva
Molhado de me esperar.


No espelho me vi você
Me olhando com olhos que pedem,
Lacrimejei sua saudade
De meia noite solitária
Em bar de multidão.


Em minha cama
Me deitei sobre você
Como se fosse meu colchão
E acordei sozinho
Depois da noite de vontade.

Outro Lado

Quero sentir como a mulher

Para quem a dor do corpo

É nada ante a da alma.


Quero sentir como a mulher

Que se dispõe a amar

Antes de conhecer.


Quero sentir como a mulher

Para quem a dor alheia

É um corte em si mesma.


Quero sentir como a mulher

Que sorri do nada

Pelo prazer de rir.


Quero sentir como a mulher

Que chora do nada

Por querer chorar.


Quero sentir como a mulher

Que abarca o mundo

No mais amplo abraço.


Quero sentir como a mulher

Que finge por bem querer

E mente pra não perder.


Quero sentir como a mulher

Que desenha na areia

Os sonhos que quer ter.


Quero sentir como a mulher

Que vê nas nuvens

Tudo o que ama.


Quero sentir como a mulher

Que encara a luta

Sem medo da ferida.


Quero sentir como a mulher

Que nem sabe o que sente,

Apenas sente.

Vida Nova

Rasga reto a retina

O brilho da matina

Que ofusca e dói

Na manhã de mil sóis.



O ouvido olvida

Os sons de outra vida

Após a noite insone,

Lua de cicerone.



O dia novo se abre

Rasga a noite como sabre

Nova vida se revela

Acendendo como vela.



O passado já de foi,

O futuro já diz “oi”,

Me aperta num abraço.

Minha vida eu mesmo faço.

Retirante

Foi lembrando pela estrada

As coisas de sua terra quente

Flaviana na mesa velada

O pote de água fervente

As avoantes levantadas

E o coração descrente



Foi vendo na secura derredor

A caatinga sem fim espalhada

No ocre do barro unicolor

Como toda a lágrima ali secada

Os mandacarus sem uma flor

A criação com a pele esturricada



Foi vendo o céu azul sem fim

Nem uma nuvem de esperança

Com seu branco de marfim

O final daquela secança.

Pelo não, pelo talvez sim

Seguiu andando pra distância



Foi olhando o passado se passando

A incerteza toda à sua frente

Os pés no chão assando

O corpo inteiro doente

As lembranças da vida quando

Ainda havia um deus em mente

Sede

Calor

Muitos graus

Sol a pino

Suor

A garganta seca

Alguém ao lado

A quem se quer bem

A hora que passa

A vontade que vem



Garganta rachada

Corpo molhado

Do ardor do dia



A resistência falha

Escora-se no espaldar

De desconfortável cadeira

E pede-se o inevitável



Ao primeiro gole

O amargo do fermento

Espanta



Mas desce rasgando

As ranhuras da sede que se vai

Aos poucos

Suavizando

Acalmando

Excitando

Abrandando a agonia



Vem a vontade de mais outra

A delícia do gelo

Faz o calor sumir

E a inquietação se esvai

Sede

Calor

Muitos graus

Sol a pino

Suor

A garganta seca

Alguém ao lado

A quem se quer bem

A hora que passa

A vontade que vem



Garganta rachada

Corpo molhado

Do ardor do dia



A resistência falha

Escora-se no espaldar

De desconfortável cadeira

E pede-se o inevitável



Ao primeiro gole

O amargo do fermento

Espanta



Mas desce rasgando

As ranhuras da sede que se vai

Aos poucos

Suavizando

Acalmando

Excitando

Abrandando a agonia



Vem a vontade de mais outra

A delícia do gelo

Faz o calor sumir

E a inquietação se esvai

Dueto

Denoraldo:
Venha cá, essa menina,
Não se faça de difícil.
Conheço tua vida e sina
Tu já se tornou meu vício,
Sei que dançou em Cajazeira,
Já cantou em São Patrício,
Arribou para Barreiras
E hoje está pro meu bulício.


Inaura:
É não, homem
Você não vive sem ela
Eu não vivo sem você
Minha paixão valente
Agora é amor, meu bem
Verdade verde conforme
Aquela tarde dentro imensa
Estrada aberta marginal


Denoraldo:
Ela é coisa que já foi
Num existe mais nós dois
Ela é vaca sem seu boi
Sou o outro do depois
É a ti que agora quero,
Meu guaiamum com arroz,
Pra ti sou home séro
Vem pra mim, ora, pois!


Inaura:
Verdadeiro amor que amo,
Querer bem sempre não é assim?
Gostar direito com seu coração no colo
Ninar seu sentimento, minha sorte
Ser chuva serena que acorda o rio
Leva embora seu malfeito, traz a flor
E o vento fresco diz então
Vai, aventura afetuosa ser sua ela dele agora


Denoraldo:
Santo Antônio me ouviu!
Monta de pronto na garupa
Voar pra serra como o pio
De anu preto. Upa! Upa!
Nossa estrela já surgiu
Brilhosa como niuma.
Nesse brilho me avio
Nova vida se apruma

Amélia Vaidosa

Se do salto alto salto
Desejo passe de feitiço


Se me bato com batom
Cedo entre sedas e cetim


Se saio solta de saia
Lassa e lisa, tranco a casta


Se passo lápis no olho
Traço a trave da lágrima


Se aperto forte o corpete
Atiço clichês de gigolôs


Se caminho de camisola
Passo a passo sigo seu viço


Se sou fêmea fabulosa
Faço assim sua vontade


Fixo seu ser em suspense
Sustento sua fantasia


Aceito você do jeito que me quer
Dia sim, outro meu se eu quiser

Fly Me To The Moon

Me leve à lua

À sua lua na voz de Nina

Me nina, menina

Amor Maduro

É como água de madrugada

Entrando por baixo da porta:

Escorre, devagarzinho, suavemente,

Quando se dá conta

Já invadiu o ambiente.



É como cheiro da primavera

Que perfuma ruas e praças:

Não acontece da noite para a manhã,

De uma vez, abruptamente.

Cada flor ao seu tempo

Toma conta do ambiente.



Se parece com maré alta

Em loca de pedras à beira mar:

Vem de mansinho, subindo, subindo,

Quando o caranguejo percebe,

Já lotou o ambiente.



Sem os arroubos juvenis

Vem como um elefante:

Grande, forte, sereno e bonito.

Num quarto dois por dois

Ocupa todo o ambiente.

Dalila Noir

saracoteio feito Dalila solta
deito ao léu ou ao limbo
a feminilidade represada


abro os braços
pontas de estrelas
colo aberto céu
finjo ser ilha inteira
sou eu partida ao meio


metade dentro
metade à vista
sou parte, sou todo
mulher que não pede ou manda
sou centro e margem
espera sou miragem


sou flecha que te acerta
seta sem retorno
não sou alvo, sou dardo
não sigo, sou líder
não espero, vou atrás
sou quem manda e obedece


se naufrago e desapareço
foi mergulho de falsa fuga
foi farsa diante desse olhar
largo ameaça quando parto
nuvens fartas do orvalho
feito frase , feito mar de medo
escapo grávida, volto invulnerável, viro vulto noir

Festança no Terreiro

Na melodia que me embala

Ouço vozes madrugada a dentro

Sax, flautas e trombones

Nos acordes desmedidos.

Rumba, polca, jazz e blues

Num sambinha sincopado

Reco-reco e violino

Vilvaldi, Bach e Caymmi

Rasta-pé levanta poeria

Capoeira levanta o pé



Tom suspenso e destemperado

Escala natural e mansa sacode

A casa espanta o sono

Disparo a dança no compasso

Enrosco a perna na cintura

No ritmo, dou um laço

Deslizo o braço, chego perto

Acende o olho do gato



Lundum, coco e tango

Martelo alagoano, valsa e chula

Melodia, Chico e Armstrong

Suor empapando a farda

Rodopio no salão

Saia e castanholas, flamenco

Rubor de faces e de trajes

Baleiro, Bosco e Aznavour

Casais em roda, roda, rodam

Cateretê e ciranda



Passo a passo

Xote, pasodoble e rumba

A manhã visita a roda

Mambo, merengue e milonga

Transforma o encanto em desejo

Bossa, forró e habanera

O silêncio vigia a festa

Carimbo, síriá e tambor de crioula

Chega o cansaço, marca a face

Be bop, swing e bolero

Traz o beijo.

O sopro arrepia a pele

Sinto o cheiro de café

E ouço o canto do galo

Vielas e Boulevard

Sarrapilheira de lençol
Banguela que não mastiga
Sexo livre sob o concreto
De viadutos e marquises


Play-ground de risco e asfalto
Onde pernas magrelas se divertem
No pátio árido da escola,
Vaga uma infância fantasma
Estômagos saciados pela falta
Dispensam a merenda rala


Mães buscam seus filhos na madrugada
Atravessam a angústia de ônibus ou a pé, outras vão de carro
Mulheres de todas as classes desta sociedade cindida
Lutam contra as garras narcóticas.
Duras combatentes em fila dupla dessa guerra cooptada
No palco sórdido de sua humilhada maternidade
Diante dos soldados inimigos espalhados na rua ao lado


Banho nas fontes putrefatas
Peles tratadas a cerol e cabelos secos ao relento.
Tez corada de sol e calor, boca de menina pintada de carmim
Cóccix de mulher empinado pelo corte da calça jeans
Pés nos scarpins de segunda mão
Flanam pelo boulervard
Em busca de alguns trocados
Despertam desejos
E pedem olhos brilhantes que as vejam,
Por toda a tarde


Nas ruas interceptadas de nossas vidas
Nossos sangues se misturam.
Queres o que quero?
Tua luta é a minha?
Na sanha de nossos dias
Teus medos são os meus?
Nossos filhos convivem nas vielas
Onde os perigos que os escolhem
Arrebentam nossas noites
Estilhaçam nossas almas,
Destroem seus pensamentos precoces
Unem sentimentos atrozes, impõem cumplicidades efêmeras
Sem podermos desviar, recolhemos restos de nossas crias
Sem podermos desistir, alimentamos nossos algozes,
Imploramos aos nossos homens
Confrontamos o poder, não vencemos,
Continuamos ...

Festança No Terreiro

Na melodia que me embala

Ouço vozes madrugada a dentro

Sax, flautas e trombones

Nos acordes desmedidos.

Rumba, polca, jazz e blues

Num sambinha sincopado

Reco-reco e violino

Vilvaldi, Bach e Caymmi

Rasta-pé levanta poeria

Capoeira levanta o pé



Tom suspenso e destemperado

Escala natural e mansa sacode

A casa espanta o sono

Disparo a dança no compasso

Enrosco a perna na cintura

No ritmo, dou um laço

Deslizo o braço, chego perto

Acende o olho do gato



Lundum, coco e tango

Martelo alagoano, valsa e chula

Melodia, Chico e Armstrong

Suor empapando a farda

Rodopio no salão

Saia e castanholas, flamenco

Rubor de faces e de trajes

Baleiro, Bosco e Aznavour

Casais em roda, roda, rodam

Cateretê e ciranda



Passo a passo

Xote, pasodoble e rumba

A manhã visita a roda

Mambo, merengue e milonga

Transforma o encanto em desejo

Bossa, forró e habanera

O silêncio vigia a festa

Carimbo, síriá e tambor de crioula

Chega o cansaço, marca a face

Be bop, swing e bolero

Traz o beijo.

O sopro arrepia a pele

Sinto o cheiro de café

E ouço o canto do galo

Palavra

A palavra que me fala me faz pálida

A palidez da poesia enrubesce o papel

A frase respira pelos poros do real

A realidade que abraça se faz cálida

Sim e Não

Me dá teu beijo, menina,

Cala minha boca assim.



Nem te olho, seu moço,

Vê se afasta de mim.




Me dá teus olhos, menina,

Põe tua vista nos meus.



Nem te enxergo, seu moço,

Vê se me diz logo adeus.




Me dá um cheiro, menina,

Deixa eu sentir deu odor.



Nem te aspiro, seu moço,

Tens catinga de bolor.




Me dá um abraço, menina,

Põe tuas mãos no meu corpo.



Nem te desejo, seu moço,

Esse teu torso torto.




Não me maltrate, menina,

Se me dê só um pouquinho.



Nem lhe dou nada, seu moço,

Nem tantão, nem um tiquinho.




Tu és malvada, menina,

Me destrata como a um cão.



Só não te ligo, seu moço,

Nem te quero como irmão.




Eu vou embora, menina,

Vais sentir falta de mim.



Num vá ainda, seu moço,

Insiste mais pelo meu sim.

Encastelado

Imoral festança

Com a féria alheia,

Saciando a pança,

Algibeira cheia.



No escuro da sala

Negócios escusos

Se encher sua mala

É seu costume e uso.



Ser bem duvidoso,

Ser sem moral,

Para este asqueroso

Mentir é normal.



Dono da verdade

Mente pra viver,

Na deslealdade

Brilha este ser.



Vive entre os doutos,

Visita os palácios,

Os bens alheios

Ele rouba fácil.

Amarela

Alva, alva, branca

Teu leite em minhas mãos

De café aguado

Tuas turquesas oculares

Em minhas esferas de âmbar

Par perfeito.



Branca, branca, alva

No contraste de nós dois

Aquarela.

Todas as tuas cores

Nenhuma cor em mim

Complementos.



Clara, clara, nuvem

Em meu céu tempestuoso

Inquieto.

Tua calmaria dia claro

Meus ciclones irrequietos

Estações.



Alva, clara, nuvem branca

Serena garça vôo solto

Ninho.

Tu planas sobre mim

Espero teu pouso

Vida.

Amarela

Alva, alva, branca

Teu leite em minhas mãos

De café aguado

Tuas turquesas oculares

Em minhas esferas de âmbar

Par perfeito.



Branca, branca, alva

No contraste de nós dois

Aquarela.

Todas as tuas cores

Nenhuma cor em mim

Complementos.



Clara, clara, nuvem

Em meu céu tempestuoso

Inquieto.

Tua calmaria dia claro

Meus ciclones irrequietos

Estações.



Alva, clara, nuvem branca

Serena garça vôo solto

Ninho.

Tu planas sobre mim

Espero teu pouso

Vida.

Recorrência

O poeta se prende

No tema recorrente

A todos os poetas.



Forceja contra o óbvio,

Briga contra o que foi dito,

Redito, bento e maldito.



Não há poeta que não fale

De amor, paixão, dor e lua,

Que não caia na armadilha.



Quem se arriscar a escrever

Não resiste ao tema pronto,

Cede um dia ao lugar-comum.



Dura missão de tentar

Não repetir o que leu

Ou não leu, mas já existe.



O poeta resiste e não mais poder

Até dar-se por vencido

E votar a calçadas já pisadas.

Até Logo

Senti os nós dos ossos

E o cheiro da pele.



Olhei o fundo dos olhos

E as tetas que me olhavam.



Beijei todos os lábios

E o vão livre entre as costas.



Dias se confundiram com noites,

Noites viraram manhãs

Num ir e vir de maré,

Forte e oloroso oceano

Entre dois náufragos

Agarrados numa só vida.



Senti o afago dos dedos

E o calor da boca molhada.



Ardi em fogo bando,

Assei em chama brava.



Me afoguei em saliva

E nadei em seu gozo.



Até logo dorido

Com gosto de muito mais.

Festança no Terreiro

Na melodia que me embala
Ouço vozes madrugada a dentro
Sax, flautas e trombones
Nos acordes desmedidos.
Rumba, polca, jazz e blues
Num sambinha sincopado
Reco-reco e violino
Vilvaldi, Bach e Caymmi
Rasta-pé levanta poeria
Capoeira levanta o pé


Tom suspenso e destemperado
Escala natural e mansa sacode
A casa espanta o sono
Disparo a dança no compasso
Enrosco a perna na cintura
No ritmo, dou um laço
Deslizo o braço, chego perto
Acende o olho do gato


Lundum, coco e tango
Martelo alagoano, valsa e chula
Melodia, Chico e Armstrong
Suor empapando a farda
Rodopio no salão
Saia e castanholas, flamenco
Rubor de faces e de trajes
Baleiro, Bosco e Aznavour
Casais em roda, roda, rodam
Cateretê e ciranda


Passo a passo
Xote, pasodoble e rumba
A manhã visita a roda
Mambo, merengue e milonga
Transforma o encanto em desejo
Bossa, forró e habanera
O silêncio vigia a festa
Carimbó, síriá e tambor de crioula
Chega o cansaço, marca a face
Be bop, swing e bolero
Traz o beijo.
O sopro arrepia a pele
Sinto o cheiro de café
E ouço o canto do galo.

Construção

Fez-se o verbo

E o predicado surgiu.

Os adjetivos abundam

Desde antes das letras.

Substantivos concretos

De arame a argamassa

Estruturam a construção.



Fez-se o verso

E a estrofe surgiu

Confundindo-se em fonemas

E sílabas que se confundem.

Advérbios, ênclises e mesóclises

Na salada de signos.

Gramática complicada

Sem lógica matemática.



Fez-se o vício

De escrever por segundos.

Alfabeto sem alfa ou beta

Numa babel gráfica.

Pleonasmos redundantes,

Cacófatos incômodos

Nos rabiscos em portas de banheiros

Alguns direcionados ao vaso:

Poesias bêbadas.

Adoniran

Adoro brincar de falar errado

Falar é chato

Brincar de falar é bom



Adoro brincar

Falar errado é brincadeira

Brincar é bom



Falar certo é regra

Brincadeira é transgressão

Transgredir é bom



Adoro falar certo

E brincar de falar errado

Brincar de falar certo é chato



Falar certo é gramática

Falar errado é brincadeira

Gramática é bom e chato



Falar errado é brincadeira

Ouvir o errado dói

Ouvir errado é chato



Escrever errado é errado

Falar errado é divertido

Diversão é bom



Dói ouvir errado

Gramática é certo

Errar a gramática dói



É preciso saber falar errado

Já ensinava Adoniran

Adoniran é bom

A Lua e Ela

Aquele tanto de formosura

Até feriu os olhos,

Doeu nos ossos,

Suou nas mãos,

Abriu fissura,

Botou antolhos,

Me deixou moço,

Me tirou do chão.



Aquela beleza toda

Me levou ao firmamento,

Botou quebranto,

Derreteu a pedra

Que me incomoda

O peito a dentro,

Refez o encanto

Que agora medra.



A lua de sentinela

Faz da noite dia

Dá-se nua na janela

E se espalha pelo piso.

Vejo na lua

Ela, minha amarela,

Brilho que arrepia

Com a cara num sorriso.

Autoridade dos Becos

Paciência era nenhum das vielas
Tinha cabeça de nada dentro
Carregava no colo e nas golas
Flores de papel crepon e broches improvisados.
Se tinha família, nem ele sabia
Não tinha nem a si próprio
Que fugiu de dentro de si com a cigana
Que fugiu de madrugada na garupa do mascate.
Paciência tornou-se senhor dos becos
comendo no simidão fumando por se de graça
Bebendo água de chafariz e pensando no não pensar,
Era o prefeito do nada, delegado de ninguém,
Baterista sem tambor.
Se me deixares à míngua
Sem água
Sem pão
Sem carinho

Se me quiseres morto
Sujo
Fedorento
Podre

Se me atirares pedras
Ou paralelepípedos
E me enterrares

Se me afogares
Ou me queimares vivo

Se te despedires
Quando te chamo
E nem ligares

Se me deixares nu
Com frio
Ou torrando ao sol

Se me atirares aos leões
Ou me sangrares
Com a lança dos gladiadores

De vingança
Não te esquecerei
E viverei do amor
Que sinto por ti.

Luar no Sertão

Luar no Sertão
O céu me sorri
Com lábios de quarto crescente
Sorriso amarelo e banguela.

Na face abobadada
Sardas brilhantes e sem fim.

A noite passa,
As horas anda
me o sorriso do céu levanta
e adormece sob o lençol amarelo
do fim da madrugada.

Bocagiana

Gaze, iodo, esparadrapo,
Papel, tinta, caneta,
Moela, cloaca, papo,
Zarolho, vesgo, perneta,
Cobra, perereca, sapo,
Asma, azia, enxaqueca,
Bonito, charmoso, guapo,
Azul, amarela, preta,
Pipeta, béquer, proveta,
Toalha, talher, guardanapo,
Ripa, madeira, vareta.

Mãos Vazias

Na palma da mão
Tem uma poesia inacabada
Que acrescenta um verso a cada dia.

Na outra mão
Uma página em branco
E se mais mãos tivesse
Para outras poesias serem escritas...

Veia poética
É do homem que faz poesias
Com a ponta dos dedos
Como o poeta que se foi voando
Com suas asas portáteis
Escrever nas nuvens
Suas poesias celestiais.
Morrer de amor.

Mão é para um eu,
Somente para quem viveu de amor
Cantou o amor
Escreveu o amor
E perdeu um grande amor.

O poeta foi apaixonar os anjos
Porque na Terra
Não havia mais quem não o amasse.

O maior poeta vivo
Está fazendo vestibular
Para maior poeta do Céu.

Urbano

Luzes
Faces
Faces luzidias dioturnas
Nas paredes grafitadas
De meia noite insone.

Flores cadavéricas
Nos pés da estátua
Em homenagem esquecida
De séculos sem tempo.

Ruas da cidade
Sem razões quadráticas
Na visão do bêbado multiforme.

Cinzas
Tintas
Merda
Mal cheiro de cavalos
Suados e maltratados
Por vielas iluminadas de neônio
Sob a Lua descorada
De cidade esquecida.

Batinas
Sexo
Na sacristia.

Revistas imorais
Cine privê
E sala lotada
Com televisão mentirosa.

Aventura

Subi no pedestal dos seus pés
e escalei a parede de suas pernas
numa subida íngreme e sensual
explorando cada recanto
de suas montanhas e vales.

Erguia-me instintivamente
em busca do que nunca vira,
mas sabia onde encontrar.

Sem cansaço e sem pressa
segui na jornada,
a boca secade ânsia.

De repente
sua planície vertical até então
com vagar foi deitando
e eu junto.

Após seu bosque de touceiras
tecidas desarrumadamente
viajei em busca das montanhas gêmeas
e, no cânion entre elas,
não soube que lado seguir.

Meu aríete já explorava a caverna
por ele desconhecido
(missão pouco ortodoxa para um aríete)
e nos deliciávamo
sem beijo demorado e úmido
com sabor de sexo.

Casual

Nada sei de propósito

Vejo a flor e adivinho a borboleta

Ouço a água e sei do peixe

Pela buzina sei do atropelamento

Nada de propósito.



Sinto a brisa e pressinto a chuva

Olho a vaca e ante-saboreio a picanha

Pelo cacaueiro sei o gosto do chocolate

Na criança já vejo o chato futuro

Sem querer, por acaso.



Pela pasta sei da propina

Pelo terno sei do corrupto

Pelo espirro sei do vírus

Pelo sapato sei da puta

Totalmente acidental.



Por teus olhos antecipo a dureza

Tuas costas me contam da maciez

Olho tuas coxas e prevejo a noite

Teu batom me conta do teu beijo

Na tua mão fechada o adeus se apronta.

Perda Maior

Na fumaça louca do cigarro
A sombra da névoa da favela
Onde meninas estupradas
Fazem tricô com seus traumas
E mães aflitas e conformadas
Choram a dor do hímem perdido,
Mais valioso legado da filha,
Fisicamente uma película,
Na vida a própria vida.

Na brasa a verdadeira dor
De ter um assassino sobre o corpo
E um rasgar entre as pernas
Causando saltos inexplicáveis
Sob o seio duro,
Sem excitação, mas pavor
De encarar os desconhecidos:
O sexo e o homem.

Na cinza o passado remoto
Onde cirandas eram a brincadeira
Hoje proibida pelos nervos arrebentados,
A vergonha da perda
Do que sequer sabia existir.

O bandido está à solta
E as crianças nas ruas,
Vulneráveis ante a insanidade
Do endiabrado marginal,
Pênis infeliz na luta com a vítima.

Anjo da Guarda

Um beijo
No meio da minha cara
Me deixa pensando
No depois de agora.
Quero te amar até morrer
E depois da morte
Velar teus dias
Como anjo-da-guarda.

Pedra

Meu peito bate na pedra
fria, lápide rústica
não responde à batida.

Bato com o peito na pedra
e a pedra entra no peito,
quartzo perene,
insensível para novos amores.

Bato a pedra do meu peito
noutra pedra
e o som do choque
me torna de pedra,
pedra mole, talco,
arrebentando de querências.

Sem Pé ou Cabeça

Mais uma luz
Em outro túnel
E a indiferença de cada olhar.

De todas as direções
Um vento otimista
Me envolve como emplastro.

Uma mulher mal vestida
- ou pouco vestida,questão de opinião -
Me sorri na sua loucura
E me manda um beijo doido,
Beijo em quatro dedos
Que o vento desvia
Para o careca ao lado.

Meu otimismo
Não será abalado
Pela insanidade alheia.

Ela

Não a mesma que me amava
Ou a que me enganou,
Quero a diferente delas.
A que me tire a trava,
A cica de fruta verde,
Que tire o mofo da alma.

Quero que aja como dama
E me ame como vadia,
A que ralhe por nada
E ajude a acertar.

Quero a que não faça drama
E ria dos meus erros.
Uma que seja menina de tranças
E a senhora de coque,
A enfermeira diligente
E a magoada carente,
A que resolve tudo
E a que pede ajuda.

Molecagem

Atina para a tina,
Para a latrina do quartel
Cheia de sarapatel
De porco mal cozido.

Nota tua bota
Melada de bosta
De carneiro urbano
Que fabrica bolinhas de gude
Com que a mãe não te deixa jogar.

Pega uma refrega
Com o dono da venda
E xinga o molenga
Que não pode contigo
Nem com teu umbigo.

Cada cobra tem seu rabo
Para tu apedrejares
Não te chateies
Se errar uma ou outra,
Moleque do estilingue,
Das fechaduras das moças,
Das bombinhas na igreja,
Da lata no rabo do gato,
Do passarinho balado,
Do vaso Ming quebrado
E do olho roxo de soco.

Indelével

Na calma

E na meiguice de sua voz

Perco os sentidos

E saio de mim

Para lhe velar do espaço

Inviolável de nós dois.



Abro os braços

Na esperança de depois,

Não lhe encontro

E me fecho no mundo

Onde me tranco com você,

Sem você.



Com medo de me perder

E virar um vagamundo

Em meu claustro

Procuro suas mãos

Para me guiar.



Na falta de ar

Respiro pelas suas narinas,

Lhe escrevo rimas

Para não me esquecer

De como você é poesia.



Lhe pinto na tela

Lhe retrato

Na palma da mão

Para quando perder a visão

Ter o tato de sua imagem

Gravado,Tatuado na eternidade.

Pegadas

Perdi minhas pegadas Quando te segui;
Não vi meus olhos
Quando te olhei;
Quando me achei
Estava perdido em ti.

Antinomias

Clareza é a chave do enigma,
Aquele que não é segredo nem cria mistério
protege a verdade. É signo
revela e faz da justiça seu império.

Antinomias da modernidade desiludem a razão
Apagam-se as luzes na alameda das idéias
Racionalistas às cegas torcem, cortam e combinam sua álgebra em equação,
Lógica atormentada pela entropia trazida na corvéia de tristeza.

O elétron - ironia da relatividade radioativa - que mata e cura
A viagem à lua encara envergonhada a mutação do vírus
A vacina e o mapa genético tropeçam na fome, agonia viva do Quênia
O papelão da fábrica usado em cartazes contra o desmatamento
O líder holístico viaja de férias para as Bahamas
Madre Teresa, a santa, defende a dor com expiação dos pecados
Tira-se o óleo de onde deveria jorrar água
As avenidas lotadas e os palácios endinheirados contra a poluição
Servindo as mesas, o miserável sem pão
Quem jurou por Hipócrates não atende sem recompensa
O cérebro eletrônico aproxima corações e planeja obombardeio
O caça a jato engatinha no porta-aviões em plena seca nordestina
À mesma luz que mata o tumor programa-se para matar o tumoroso
Da Vinci quis voar em busca de neve, mas o que cai dos aviões são bombas
Crianças pulam amarelinha entre minas terrestres e perdem pernas ou a vida
Endeusa-se o negro desportista, e manda-se o negro cidadãoao final da fila

Bate-se na bigorna e na ferradura sem distinção
Corre-se para o abraço e em fuga
Declara-se amor e guerra com as mesmas letras
Escrevem-se poemas e bilhetes de resgate
Declaram-se manifestos literários e manifestos terroristas
Cantam-se cirandas e palavras de ordem
Anestesia-se a dor e a provoca com mesma facilidade
Acorrenta-se o navio de mantimentos e agrilhoam-se os inimigos
Entregam-se boas novas e antrax pelo correio
Cria-se Alícia pelas mãos de Adrià - combina-se alimentação com ciência - ingredientes de bomba na comida

E a tentativa para distinguir a verdade do erro não afasta a ficção
Cria ilusão de certeza absoluta - ignorância total

A Certeza - Resposta

O tempo rasgou a seda
Que encobria a carapaça;
O vento levou no vento
O que a alma escondia;
A verve trouxe aos olhos
O que o peito não via;
A palavra trouxe o furor
Que o corpo já não sentia;
A imagem trouxe a certeza
De que alma gêmea existe;
O amor deu ao futuro
O sonho de ser um dia.

Bom

Sentir nó no peito
Vindo do nada.

Andar sem pés no chão
Como se em nuvens pisasse.

Sofreguidão de vontades
E as vontades se misturam ao todo.

Raízes fincadas em outras terras,
Férteis campos sem cercas.

Olhos nos olhos da alma
Calma nos olhos da cara.

Sorriso tatuado sob o nariz
Que só se abaixa para o beijo.

Lábios, lúdicos passatempos,
Passeios por outros lábios ávidos.

Entrelaçamento de dedos
Emaranhados em pêlos.

Ancestral

Tua vida chega antes do meu sentido
Vago fundo no leito da tua história, minha sina.
Retiro meu olhar do teu
E vejo o olhar dele em ti.

Num mundo sem letras – a miragem
Brilha, o nome de teu pai.
Vejo minha senha,
Tua carne é minha travessia
Entre o-que-é e o-que-não-é. Ele!

Eis o teu amigo. Pele, cor e fogo.
Meu caboclo do pescoço grosso!
Tua coragem é meu sorriso.
Abro e fecho tuas cortinas.
Minha pálpebra é teu abrigo.

Tateio meu amanhã na tua fronteira
– memória e esquecimento.
Voltamos nossas costas para o futuro.
Meu medo vibra.
Tua mão possui a minha no real da terra-a-terra
Caminhamos para o começo.
Hesito no vento.
Teu calor movimenta meu ar, nossa tarde estremece
Sob as bênçãos do teu passado.

E a razão vacila.

Se agarro teu chão, tropeço no meu enigma
Aninhado na ilha arcaica, solo rústico dos meus xamãs.

Meu culto é teu mito
Esticado na linha da ancestral materna ,
Minha avó e sua filha, minha mãe, desatam o nó.

Sou da terra que fizeste tua no vigor da juventude
Nas ruas da tua Canaã, sou a estranha
Destas roças onde laças nós dois que nos sabemos sós.
Ele nos vela.

Nó Cego

Amalgamada alma amada
No toque de nós dois.

Acimentados sins e nãos
No agora e no depois.

Intrincado nó de dedos
Sob luz de luas e sóis.

Balé de ir e vir de corpos
Um sou eu, o outro sois.

Univeso binário
Eu e tu somos nós.

Chico

Ainda sinto sua barba
Áspera por fazer
Roçar meu rosto
No beijo de boa noite.

Sinto o cheiro do seu cigarro
No seu hálito gostoso
Do até amanhã,
O cheiro da sua boca.

Lembro a infância distante
Quando lhe via chegar
Montado na bicicleta branca,
Cansado, todo de verde.

Lembro das mãos gordas
Fazendo afago grosseiro
Em harmonia com sua voz,
Ralhando num carinho grosso.

Saudade da casinha
Cheia de todos nós
Esperando a luz se apagar
E ele acendendo o lampião.

Lembro dos lençóis brancos
Que nos escondiam no sono
Enquanto ele, sozinho,
Caminhava pela casa.

Lembro da cadeira de balanço,
As outras de espaguete plástico
Onde se sentava à noite
Ouvindo rádio ou estrelas.

Lembro das noites sem luz
E sua voz em serenata
Animando a lua e meus sonhos.

Meu pai, amor eterno,
Que saudade das conversas
Nunca trocadas, plenas,
Lotadas de carinho.

Seus olhos de lágrimas
De tanto bem-querer que tem
No seu silêncio de carícia
Por mim e pelos nossos.

Sobre Minas

Minas não tem minas,
É fazenda.

Onde se olha Minas
Vê-se roça e chaminés.

Minas não tem floresta,
Mas matinho pequeno
Com aroma de tempero e chá,
De remedinho de vó.

Minas tem gostinho de leite
E cheirinho de capim
No sobe e desce de suas serras.

Não seria Minas se fosse plana.
Leite e verde
É a Minas irregular.

Sampaulo

Rápida passagem,
Ficada eterna entre mesas e livros,
Entre amigos e avenidas,
Sobre prédios e em subterrâneos
Com a cidade em volta.

Mil sotaques,
Mil faces por segundo.
Todo o mundo numa rua,
Ruas para todo o mundo.

Veias e artérias de betume
Espalhando-se como pernas de gigantesca aranha,
Vasos entupidos de glóbulos parados.

Vi-me nas vitrines que não me viam,
Coloquei-me nas calçadas que me calçavam,
Amei na cama que me esperava,
Beijei a boca que desejei.

Quatro foram poucos
Quando mais dias queria.
Tantos os abraços
E mais os desejados, nenhum, porém, esquecido.

Não me eternizei em seus prédios,
As construções se eternizaram em mim.
Não finquei raízes ali,
Suas raízes me tomam.

Não deixei meu sotaque em seus ouvidos,
Ouço seus erres e esses.
Minha cara não ficou em suas retinas,
Seus rostos estão nas minhas.

Desta cidade trago meu tesouro,
Empobreço São Paulo
Trazendo a mulher que amo
E o coração dos amigos deixados.

Sede e Água

Parênteses abertos para o céu da minha boca
Escorre lama multicor pelos cantos
Em minha baba hidrofóbica

Solto-me absurdo e completo aqualouco
Na piscina revolta dos olhos horizontais
Que fitam absortos em movimentos elásticos
De estilingue em mãos de bêbado e sonolento amante

Rasgo as noites de seda sobre o colchão manchado
De outras noites e dias ininterruptos
Onde suores e demais fluidos se espalhavam
Segunda piscina corpórea sem fundo

Nos ruídos silenciosos dos móveis pela madrugada
Ouço os suspiros com timbre de aflição e me confundo:
Não são dores que levitam esse corpo em curva de abóboda
Reverberações roucas de estertores incontidos

Abre-se no céu o buraco dourado que mata a madrugada
Me encontrando estafado e morto, sorriso idiota e pernas bambas
Ao lado do arco dantes teso, ora relaxado
De alva madeira e louras penas desarrumadas.

Louca

Arranha o teto com as unhas do pé
Cambalhotas ensandecidas de golfinho ferido

Louca me enlouquece, põe-me a ver navios no ar
A nadar de costas em mar bravio

Fere as portas com unhas de gata louca
E dilacera minha aura com mordidas de cadela

Atira-se de cabeça contra o muro
Reclamando da moleza dos tijolos

Arranca-me com os dentes incisivos
O que resta do miocárdio gasto pelo tempo

Sela minha boca com os joelhos sujos de poeira
Retirada de minhas solas maltrapilhas

Fio a fio me descabela a mordidas
E raspa a careca sobrante com o tamanco gasto

Lunática me manda ao inferno
Infernal me leva às nuvens.

Destino

Faz comigo o que quer, destino.
Dá-me a pobreza eterna,
Tira de mim a saúde e a fé,
Sede duro e me nega a fortuna,
Faz-me cruel,
Tira-me o siso e a inteligência,
Dá-me dores lancinantes,
Leva-me os amigos e os favores,
Deixa-me ao relento em noites frias, destino.

Faz de mim um ermitão
Em terra sem vizinhos
Sem roupa e sem pão,
Tira-me a visão, o olfato e tato,
Leva de mim o que tenho e sonhos,
Deixa-me nu sob sol inclemente,
Seca-me a boca e leva a água, destino.

Estou em tuas mãos,
Mas dá-me a alegria
De tê-la e a seu afeto infindo,
Deixa eu contar com seu afago
Em todas as dores que me reservas.
Deixa-me, destino, a mulher que amo
E não a fere.

Expedição

Começou na ponta da língua
Escorreu pelo pescoço
Seiva escorrendo pelo tronco

Mãos nas costas
Outras mãos em outras costas

Desceu pela nuca
Auréolas rosadas, hipercolor,
A mesma língua fervendo.

Outra língua em corpo oposto.

Estala alto o dique
Que continha a ânsia.

Frenesi montanha abaixo
Alagando vale que não dorme
Gigante rijo e sedento
Arrombam-se grotas
Soterram furnas invadidas.

Na batalha suores se misturam
Líquidos e vapores de cheiros.

Fogos de artifício.

Corrente

Celacanto
Peixe encantado
No canto um canto
Encanto no canto
Um conto no canto do conto
Encantamento em forma de conto
Conto em forma de canto
Encontro no canto o conto
Desencontro
Peixe no canto
Conto písceo
Encontro entre canto e conto
Desencanto entre peixe e contra
No Tom do Zé a peixa
Encantada e deixada no canto
Sem voz de desencontro
Viva peixa de aquário rachado
Largado no canto em que me encontro
Entre o quanto e o desconto
Desconto é desfazer o conto
Desencanto é desfazer o canto
Reencanto é recantar o canto
Reencontro é recontar o conto
Adicionando pontos
Peixe n’água de desencanto
Viva peixa contra a maré
Do aquário rachado
Fazendo água no canto
Em que se escala o conto
O canto no conto do canto
Canto de acalanto
Conto um quebranto
Apronto um conto
E aponto por enquanto
Apenas o pai-de-santo pronto a entrar
Como celacanto nas águas do conto
Peixes em feixes sacrossantos
No horizonte
Madeixa entre seixos da fonte
Donde levanto e pronto

Bahias

I

Na segunda te descobri
Sob a primeira santa cruz.
Te perdi no Mucuri
Reencontrei em Pau Brasil
Entre patos e pataxós,
Prima mata e primos bichos.
De mãos dadas te levo rumo a Minas,
Desviei para o frio do planalto
Te carregando sobre a tropa.
Abrimos vilas e cidades,
Sob árvores plantamos cacau,
Colhemos frutos, papamos jacas,
Carinhanha nos picou sobre amêndoas.
Subimos ao norte, caímos na primeira.

II

A primeira veio depois da segunda:
Terra do salvador,
Negra vestida de branco,
Turbante colorido.
Te levei aos trezentos altares,
Aprendi e ensinei outros sotaques,
Ofusquei o farol com o brilho
Das lentes dos teus olhos claros.
Da de cima vi a de baixo,
Forte e mercado de negros,
Púlpito de templo e tronco de escravos;
Água verde aprisionada
Por recôncavo festivo,
Praias recortadas por edifícios.
Te carreguei, minha loura,
Pelos braços e pernas,
Entre chaminés de pó negro
E peles pretas de fuligem e Áfricas.
Saí da primeira, suas ilhas,
Tambores, turistas e comidas.

III

A terceira foi a terceira visita,
Calor no quengo, calor nos abraços,
Falar de outras gentes
Tão próximas e diferentes da primeira.
Cocada de maracujá
Vira rapadura de laranja;
Abará é tapioca,
Abóbora é jerimum,
Mãinha é mãe e mamãe.
Ainda recende a bosta de cavalos
As pedras seculares das ruas,
Possível se ver umbu no pé
E não nas latas enferrujadas da feira;
Padre, juiz e delegado
São deus, autoridade e temor.
A terceira, em sua secura,
Traz a pureza e as dores de antanho.

IV

A quarta, onde te deixei,
É de lá e quase lá,
Tão longe de lá está.
Não parece com a mãe,
Não tem pai.
A quarta o Chico corta
Com suas águas vermelhas,
Vai de Juazeiro a Conquista,
Cria uvas e bodes.
Terra que tudo tem e nada dá
Para os rubros de barro e sol
E os brancos, olhos azuis,
De sul e soja, Pampa e Pará.
A quarta ainda não é,
Faz-se no arado.
Rasga-se nos papéis dos palácios,
Sai da baixeza da várzea
Ao pico da montanha.
A quarta é estranha,
É Bahia, Minas, Goiás
Ao redor do rio
E à sombra do nada.

Vôo

Ferido sob a asa voa em círculos
E vê o mundo girar redondo
Órbitas elípticas de ambos
Em espiral infindável

A espera da cicatriz leva o tempo
Que o tempo leva em si
E os males se curam per si

A elipse se desfaz em reta
O mundo é plano enorme
A se explorado em tantos vôos
Que o tempo e as asas circundarão

Lúdico

Brincar de ser sério
Lúdica intersecção
Entre o brinquedo
E a perfeição.

Ser dos dois uma farra
Sem ter tempo de brigar,
Um instiga outro segue
Outro chama e um vai.

Jogos e decisões
Jogadores nos serões
Um impõe outro replica
Outro vai quando um fica.

Diversão e sensatez
Complemento e franquia
Outro ri quando um canta
Um se encanta, o outro guia.

Pelos Pêlos

Faço a barba e vejo os
tem pêlos como os meus.
Me impressionam os pêlos dos mortos
Os cabelos dos cadáveres parecem vivos
Quando açoitados pelo vento
Balançam os pêlos vivos do morto.

Lembro da crina do cavalo no pasto
Assassinado por picada de cobra
Os cabelos do cavalo, crina e rabo,
Estavam vivos no animal morto.

Os pêlos do cachorro atropelado
Tremulam presos ao defunto bicho
Parecem voluntariosos em dança
Na música tocada pelos ventos que mexem

Minha barba está morta
Arrancada pelas lâminas guilhotinas
E descem nas águas pelo ralo
As barbas dos mortos crescem
Estão mais vivas que a carne

Em dúvidas sobre a acentuação pela nova ortografia. Tenho até 2012 para aprender e gostar.

Mudança


Cat stairs
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Os livros nas caixas
Como destinos nos livros
Guardados com as traças

Mãos de homens naas coisas
Coisas minhas nessas mãos
Eu nas coisas dos homens

Meus gatos lambem as patas
Meus olhos nas patas dos gatos
As pálpebras dos gatos se fecham
Como as caixas, esperam

Meu homem dá as ordens
Os homens fecham as caixas
Minha história segue meu homem
A caixas seguem com os homens

Minha vida no caminhão
A mudança em mim
E eu no avião